Trabalhar com medo é improdutivo

Anne Glienke
5 min readFeb 22, 2023

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Quando eu comecei a trabalhar na Alemanha, meu maior medo era não "mostrar serviço" e ser mandada embora. Meu onboarding durou algumas semanas e eu recebi minha primeira task, depois de implorar por uma, 3 ou 4 semanas depois de começar. Minha team lead repetia constantemente que eles não esperavam que eu entregasse nada nos primeiros 3 meses. Minha única meta era rampar na stack deles, entender a plataforma de dados, acompanhar e participar das discussões da equipe.

Pra alguém que veio da cultura de trabalho brasileira, era muito difícil entender/aceitar essa forma de trabalho. A insegurança e a ansiedade me engoliam no café da manhã todo dia.

Nas últimas sextas de cada sprint, a gente estudava. De manhã a gente trocava conhecimento entre os membros da equipe; fazia pair/mob programming pra resolver pepinos que empacaram a galera ao longo da semana; compartilhava novos aprendizados, artigos, informações que ouviu em eventos; discutia hypes e soluções diversas da que a gente usava. À tarde a gente estudava livremente algum assunto que nos interessasse. Não tinha restrição de tópicos. Eu tirei uma das minhas sextas, por exemplo, pra começar a ler um livro que ganhei da empresa, sobre como viver mais e melhor. Minha team lead achou super legal e me falou pra compartilhar o que tava aprendendo com a equipe.

Aqui na Alemanha é muito difícil demitir alguém depois do período probatório. E eu acredito que isso é um incentivo enorme pra empresa, de fato, investir no desenvolvimento dos seus empregados.

Dar tempo pra gente estudar durante a sprint significava nos equipar pra resolver problemas de forma mais bem informada, e criar uma equipe capaz de enxergar mais possibilidades de abordagens e de soluções. A empresa queria que a equipe tivesse tempo pra avaliar as novidades do mercado, e entender os problemas da empresa profundamente, pra que fosse capaz de se comprometer com soluções que realmente fizessem sentido.

Assim ela também evitava empenhar recursos em retrabalho, em trocas desnecessárias de ferramentas. E garantia que a gente tivesse tempo de entender e extrair o máximo de cada ferramenta, framework, solução.

Fonte da imagem: https://bit.ly/3HMDWVA

Do lado dos empregados, porque a gente sabia que podia ficar muito tempo lá, a gente queria fazer o melhor trabalho possível, pra todo mundo ter prazer em continuar criando e aperfeiçoando soluções. Além disso, porque a gente sabia que não corria risco de demissão, todo mundo ficava à vontade pra opinar, criticar, discutir. E também desenvolvia a habilidade de encontrar terreno comum e buscar consenso (ou o mais próximo possível disso).

Quando a gente chegava numa conclusão, a gente se sentia seguro pra começar a trabalhar nela. A gente tava alinhado. A gente sabia justificar as nossas escolhas.

Era uma experiência muito diferente pra mim. Na maioria das minhas experiências até então, eu não tinha muito espaço pra pensar, discutir, propor, ouvir várias opiniões e encontrar coesão na diversidade. Não fazia diferença o que eu acreditava. Eu acabava, sinceramente, estudando muito mais pra me desenvolver e conseguir um emprego melhor do que pra contribuir com o trabalho que eu tinha.

Por muito anos, enquanto eu trabalhei no Brasil, eu tinha medo de ser demitida por não parecer ocupada, por não ser vista trabalhando em várias coisas ao mesmo tempo. "Acabou as tasks da sprint? Pega mais do backlog." A gente ficava sem entender porque dedicava tanto tempo a planejamento de sprint em vez de só priorizar as tasks do backlog e ir trabalhando nelas.

E é até engraçado como a aparência de produtividade extrema às vezes é mais importante do que a entrega de valor em si.

Eu também aprendi que não era recomendável discordar muito do chefe. E que, se você quer discordar um pouquinho, tem todo um jeitinho pra fazer isso sem ferir nenhum ego.

Eu trabalhei numa equipe em que eu vi um colega com muita experiência técnica e conhecimento do negócio ser preterido numa promoção porque expunha as fragilidades no raciocínio do chefe. Isso, de certa forma, determinou muito do comportamento da equipe dali em diante.

Tive chefes que não tinham conhecimento técnico suficiente pra tomar decisões, mas ainda assim se recusavam a ouvir as pessoas mais sêniores da equipe, quem dirá perguntar a opinião dos demais membros. Eles não pareciam acreditar que a equipe podia contribuir com o debate e enriquecer a solução. Eles vinham pras reuniões com uma opinião formada, uma decisão final a ser comunicada, e ordens sobre o que precisava ser feito.

Os empregados não tinham autonomia e também não tinham estímulo pra estudar ou segurança pra sugerir abordagens diferentes.

Fonte da imagem: https://bit.ly/3kpsNRJ

E, nesse contexto, realmente não faz sentido oferecer espaço pras pessoas estudarem. Essas empresas não contratam empregados pra pensar, mas pra executar ordens.

Mas sabe qual é a pior parte de ambiente inseguros como esses? É que eles são extremamente excludentes.

Pessoas que têm mais dificuldade de se reinserir no mercado de trabalho (seja pela idade, gênero, deficiência, orientação sexual, etnia, formato de família, neurodivergência, problema de saúde etc) não podem assumir o risco de errar da mesma forma que os demais. E aí, mesmo que a equipe seja diversa, a sua capacidade de apontar problemas e de inovar fica absurdamente limitada.

Nessa altura, eu já falei sobre isso vezes o suficiente pra saber que vai ter gente que vai dizer: "isso funciona na Alemanha. No Brasil, se você criar um ambiente desses, o povo não trabalha". Bom, na Alemanha também tem gente que não trabalha nesse tipo de ambiente. As pessoas são diferentes. Têm estímulos e objetivos diferentes. Vai ter gente que vai trabalhar ou não em qualquer modelo.

Também não vou negar que eu gosto de um ambiente dinâmico e às vezes só quero pôr a mão na massa logo. Discutir tudo à exaustão nem sempre é um mar de rosas.

Mas, hoje, pra mim, a importância de criar um ambiente seguro no trabalho é clara. Ambientes seguros não só promovem soluções mais criativas, diversas e inovadoras, menos custosas, em que a equipe tem mais prazer de trabalhar. Eles também garantem mais saúde mental pra equipe e mais ânimo pra se dedicar aos problemas da empresa.

Quando a gente sabe que a nossa opinião é valorizada, que as pessoas confiam na gente pra contribuir, a gente estuda com vontade.

Quando a gente não tá constantemente com medo da demissão, a gente consegue descansar e curtir a vida, a família. A gente vai de cabeça fresca, limpa e aberta pro trabalho. A gente vive mais feliz.

Em época de normalização de demissões em massa, eu acredito que a decisão mais acertada que uma empresa pode tomar é oferecer segurança pros seus empregados. Isso já é um diferencial pra quem procura emprego hoje e vai ser cada vez mais.

A instabilidade é míope e tem um preço. E ele é caro.

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